Olá!
Gostaria de agradecer meu grande amigo Marcio Mendonça que me enviou por email um texto de Fernando Henrique Cardoso, ex- presidente do Brasil e grande escritor, acredito que o texto tem tudo a ver com o que se propõe este blog, então gostaria que voces aproveitassem-no para uma reflexão.
Um abraço!
Titus●•ツ
"O Som do Coração" (๏̯͡๏)
“A
pedido da vida, percorrerei toda extensão do Universo contido dentro
do meu coração.”
OS QUE ESTÃO VIVOS E OS MORTOS
F.H.Cardoso
No
fundo estamos condenados ao mistério. As pessoas dizem, eu gostaria de
sobreviver além da minha materialidade... Eu não acredito que vá
sobreviver, mas, pelo menos na memória dos outros, você sobrevive.
Vivi
intensamente isso com a perda da Ruth. Olhando para trás, é claro que
ela estava com um problema grave de saúde. Apesar disso fizemos uma
viagem longa e fascinante à China. É como se o problema não existisse. A
gente sabe que um dia vai morrer e no entanto vive como se fosse
eterno.
Depois
da morte de Ruth e, mais recentemente, de outros amigos, como Juarez
Brandão Lopes e Paulo Renato, eu me habituei a conversar com os que
morreram. Não estou delirando. Os mortos queridos estão vivos dentro da
gente. A memória que temos deles é real.
À
medida que vamos ficando mais velhos, convivemos cada vez mais com a
memória. Conversamos com os mortos. Por intermédio da Ruth, passei a
lembrar mais dos outros que morreram, dos meus pais, meus avós. Os que
morreram e nos foram queridos continuam a nos influenciar. O que não há
mais é o contrário. Não podemos mais influenciá-los.
Eu
não penso na morte. Sei que ela vem. Já senti a morte de perto. Não em
mim. Senti a morte de perto nos meus. E procuro conviver com ela
através da memória. Os que se foram continuam na minha memória e eu
converso com eles. Minha mãe, meu pai, minha avó, minha mulher, meu
irmão, meus amigos que se foram são meus referentes íntimos. Tudo isso
constitui uma comunidade – posso usar a palavra – espiritual, que
transcende o dia a dia.
Então,
a morte existe, ela é parte da vida, é angustiante, não se sabe nunca
quando ela vai ocorrer. Eu só peço que ela seja indolor. Não sei se
será.
Ninguém
sabe como e quando vai morrer. Pessoalmente, tenho mais medo do
sofrimento que leva à morte do que da morte propriamente dita.
Se
não é possível ter a pretensão utópica de sobreviver como pessoa
física, é possível ter a aspiração de viver na memória, começando por
conviver com a memória dos que se foram. Isso tem alguma materialidade?
Nenhuma. Isso é científico? Não é. Mas é uma maneira de você acalmar
sua angústia existencial.
"Os mortos queridos vivem dentro de nós.
Os que morreram continuam a nos influenciar.
Nós é que não podemos mais influenciá-los."
SENTIDO DA VIDA
Aos
80 anos creio que cada um cria o sentido de sua vida. Não há um único
sentido. Isso é muito dramático. Cada um tem que tentar criar o seu
sentido.
Nesse
ponto os existencialistas têm razão. É muito angustiante. Tem uma
dimensão da existência que é inexplicável. Ou você consegue conviver
com isso no dia a dia sem apelar para a transcendência – digo no dia a
dia porque, de vez em quando, todo mundo apela... – ou você tem que
criar algum sentido para justificar, se não explicar, o sentido das
coisas.
Eu criei, imagino que sim. Achei que devia ter uma ação intelectual para entender e para mudar o Brasil.
Na
verdade é isso que eu queria, mudar as condições de vida no Brasil. A
literatura me influenciou muito, sobretudo a nordestina, José Lins do
Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado. Depois as Vinhas da Ira, de John
Steinbeck, sobre a revolta social na América da Grande Depressão. Ou
mesmo Roger Martin Du Gard com Os Thibault e, já noutra direção, André
Gide e, também, a metafísica de A montanha mágica, de Thomas Mann.
Esse caminho da literatura me contagiou e me levou à política.
Passei
a vida inteira tentando entender melhor a sociedade, os mecanismos que
podem levar a uma sociedade mais decente, como digo hoje, não apenas
mais rica, e sim mais decente.
Tem
que haver, é claro, algum grau de riqueza, senão a miséria, a
escassez, predomina e então não se tem nem liberdade nem igualdade. A
escassez é a luta, a guerra pela sobrevivência. Tem que haver um certo
bem-estar material. Além disso, porém, é preciso criar uma condição
humana de dignidade, de decência, de aceitação e respeito pelo outro.
Tentei
entender isso do ponto de vista intelectual e fazer a mesma coisa do
ponto de vista político. Então acho que dei um certo sentido à minha
vida. Esse sentido tem que ser dado por cada um. Não está dado que
todos tenham que ter o mesmo sentido e haverá quem nunca encontre
sentido na vida e fique batendo cabeça.
"Quando se vai ficando velho e, portanto,
mais maduro, você tem que valorizar
mais a felicidade, a amizade,
essas coisas que, no começo da vida,
parecem secundárias."
Essa
angústia vai ser permanente. Não tem solução. É parte da condição
humana. Não sabemos de onde viemos, não sabemos para onde vamos.
Tampouco sabemos por que e para que estamos aqui. O que não podemos é
deixar que essa angústia da morte e da ausência de um destino claro nos
paralise.
Cada
um tem que inventar sua resposta. Cada um tem que dar sentido à sua
vida. Ela não tem sentido em si. Esse sentido não está dado. Cada um
tem que construir o seu sentido. E vai sofrer para encontrar.
Uma resposta está no próprio convívio com os outros. Inclusive com os
mortos. Talvez isso arrefeça um pouco a angústia. Não se vive sem
amizade, sem amor, sem adversidade.
Quando
se vai ficando velho e, portanto, mais maduro, você tem que valorizar
mais a felicidade, a amizade, essas coisas que, no começo da vida,
parecem secundárias. Você continua querendo mudar o mundo, mas sabe que
as pessoas contam.
Embora
eu tenha sempre me definido como mais intelectual do que como
político, na verdade minha vida foi muito mais dedicada ao público.
Isso vem da minha ancestralidade, da minha convivência familiar.
O sentido, para mim, sempre consistiu em buscar fazer alguma coisa que
mude a situação mais ampla do que a minha própria. Nunca fui uma
pessoa voltada em primeiro lugar para alcançar o meu bem-estar. Eu
tenho bem-estar. Diria que quase sempre tive bem-estar. Mas esse não
foi o meu valor.
Mesmo
em termos subjetivos, na a ideia de felicidade, nunca busquei com
denodo a felicidade pessoal. Eu a tive de alguma forma, nunca me senti
infeliz. Eu me dediquei muito mais a ver a situação dos outros. De uma
maneira modesta, sem proclamar. Nunca andei proclamando, sou solidário,
sou do bem. Mas levei a vida inteira pensando no mundo, pensando na
sociedade, pensando nas pessoas, nos outros. O sentido que dei à minha
vida foi construir isso.
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Fonte: CARDOSO, Fernando Henrique Cardoso – A soma e o resto: um olhar sobre a vida aos 80 anos