quarta-feira, 23 de abril de 2025

A DOR TEM SOTAQUE

Tem dor que chega primeiro.
Antes da pessoa abrir a boca, ela já entrou na sala.
Tá no jeito do corpo curvado, no olhar baixo, na mão inquieta.
Tem dor que grita.
Tem dor que finge ser valentia.
Tem dor que se fantasia de raiva só pra não se mostrar frágil.

E tem dor que sorri.
Ah, essa é a que mais me dói.
Porque ela vem disfarçada de "tá tudo bem", mas por dentro carrega um furacão.

A dor tem sotaque, sim.
Ela muda de tom conforme a história de quem sente.
Tem dor que nasceu em berço duro, dor que veio da infância desbotada, dor que foi crescendo junto com os anos, calada.
Ela se expressa no silêncio, na ausência, no excesso.
Ela grita nas entrelinhas, no exagero, na resposta atravessada.

Uma vez, em Goiânia, conheci um homem que parecia um leão.
Falava alto, batia com força as palavras, como se quisesse derrubar paredes.
Dizia que não precisava de ajuda, que estava ali à força, que era tudo "palhaçada".
Mas a verdade, Cido, é que ele só queria alguém que não desistisse dele.
Alguém que não se assustasse com o rugido.
Quando a gente teve paciência de ficar, de ouvir, de olhar nos olhos…
o leão virou menino.

Era dor antiga ali.
Dor de abandono, de solidão, de um mundo que não foi justo.
Ele só queria ser visto, não julgado.
Só queria ser escutado sem pressa, sem pressa nenhuma.

E teve aquela moça…
Tão doce. Tão gentil. Sempre sorrindo.
Mas era o sorriso mais triste que já vi.
Porque por trás dele, morava um grito.
Aquele tipo de dor que aprendeu a não incomodar.
A dor educada.
A dor que se acostumou a não ser prioridade pra ninguém.

A dor tem sotaque.
Às vezes ela fala rápido, às vezes devagar.
Tem dor que se disfarça de força.
Tem dor que se veste de indiferença.

E quem vive entre gente — como eu e você, Cido —
precisa aprender a escutar mais do que palavras.
Precisa ouvir os gestos, os silêncios, os cansaços.
Porque a dor se esconde em frases como "tá tudo certo", "já tô acostumado", "tem gente pior".
Ela se camufla pra sobreviver.

E aí a gente entende:
O bravo não é ruim, o calado não é desinteressado, o exagerado não é desequilibrado.
Eles só falam com sotaques diferentes da dor.

E a dor, Cido, pode estar em qualquer canto.
No morador de rua enrolado num cobertor,
na mulher de salto alto no ônibus das seis,
no menino que responde atravessado,
no velho que reclama de tudo.

Não tem dor menor.
Não tem dor que mereça menos escuta.

O que muda tudo é quando a gente para de tentar calar a dor dos outros e começa a escutá-la de verdade.
Porque, por trás de cada gesto estranho, de cada reação desproporcional, de cada “não precisa se preocupar”…

…existe um pedido escondido, quase mudo, mas que ecoa forte pra quem sabe ouvir:

“Me veja. Me ouça. Me acolha.”

Por Titus, o som do coração

terça-feira, 22 de abril de 2025

O que os olhos não dizem, o corpo grita

Era São Paulo. Mais de vinte e cinco anos atrás. A cidade já carregava nas veias aquele sangue acelerado, misturado com o pó dos ônibus e o cheiro de pastel na esquina. Eu morava numa pensão modesta ali perto da Consolação, e todos os dias cruzava a cidade num vai e vem sem muito glamour, mas cheio de encontros. Trabalhava, estudava, vivia — tudo ao mesmo tempo, como todo paulistano que se vira entre os sonhos e os boletos.

Naquele tempo, o centro ainda tinha sua dignidade de ferro e concreto, mesmo cansado. A Estação da Luz ainda parecia um cartão-postal esquecido no tempo, e a praça da Sé era um palco onde a vida improvisava em tempo real.

Foi ali, entre a Xavier de Toledo e a São João, que vi ele.
Não tinha nome. Pelo menos, não um que me dissesse naquele momento. Mas tinha um corpo que falava. E falava alto.

Era um fim de manhã típico — céu encoberto, cheiro de pão amanhecido no ar, gente pra todo lado. Mas ele, ele parecia fora do ritmo. Um passo atrás do mundo. Arrastava os pés como se cada um carregasse um ano de dor. Mão enfiada no bolso do moletom puído, o olhar colado nas pedras portuguesas do calçadão, como quem procura uma resposta no chão.

Ele não pedia nada. Não estendia a mão. Mas o corpo dele gritava.

E a gente, quando carrega o coração meio aberto — às vezes por vocação, às vezes por ferida — aprende a ouvir esse tipo de grito. Não vem com som. Vem com presença. Uma presença que esbarra na gente mesmo sem encostar.

Cheguei perto. Perguntei se queria um pão de queijo ali do boteco da esquina. Ele recusou. Disse que tava tudo bem. Mas não foi embora. E eu também não.

Ficamos.
Às vezes, o gesto mais revolucionário é ficar.

A conversa veio aos poucos, como chuva fina. Primeiro o nome do bairro onde nasceu. Depois a história da avó que criou ele. Aí veio o baque: a mãe internada, o pai ausente, a rua como única possibilidade. Perdera o emprego, a confiança, o rumo. E junto com tudo isso, perdeu também o olhar dos outros.

Disse:
"O pior não é passar fome. É não existir pra ninguém."

Aquilo me travou. Em plena São Paulo, onde milhões de passos se cruzam todos os dias, ele só queria ser visto. Não notado como estatística ou caso social. Mas visto. Como ser humano. Como alguém que ainda pulsa.

E, Cido, ali eu entendi que o corpo fala. Fala quando a palavra engasga. Fala no jeito de andar, de se encolher, de evitar o mundo. Fala no silêncio.

Depois disso, passei a caminhar mais devagar por São Paulo. A cidade ainda era um bicho corrido, mas eu aprendi a escutar seus sussurros. Vi o menino que vendia chiclete na Augusta olhando pro céu como quem esperava uma resposta. Vi a moça da barraca de cachorro-quente do Anhangabaú chorando sem som quando pensava que ninguém via. Vi o segurança da loja dormindo em pé, exausto de um turno dobrado.

Todos gritavam. Cada um à sua maneira.

Mas quem escuta?

A pressa é surda, Cido. E São Paulo é feita de pressa.

Mas eu tive esse privilégio. De parar. De ver. De ouvir um silêncio que dizia tudo.

E talvez, naquele dia, eu não tenha feito muito. Talvez só tenha sido um ponto de pausa numa trajetória de dor. Mas naquele instante, ele soube que existia. Que alguém o viu. Que ainda era possível estar no mundo sem ser só paisagem.

E você?
Já ouviu o silêncio de alguém hoje?

Titus, o som do coração

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Sou um Leitor de Silêncios

Sou um Leitor de Silêncios

Por Titus, o som do coração

Não, eu não adivinho cartas.
Não tenho poderes sobrenaturais.
E, definitivamente, não uso capa.
Mas, ao longo da vida, aprendi uma coisa rara:
a escutar o que não é dito.
A enxergar o que se esconde nas entrelinhas.
A perceber o que não salta aos olhos — mas que grita no silêncio.

Tem gente que entra num ambiente e diz tudo sem dizer nada.
O corpo já chega antes, com o peso do dia.
O olhar entrega o que a boca ainda vai negar.
E o silêncio… ah, o silêncio é cheio de palavras que ninguém ousou traduzir.

A vida me ensinou a notar essas sutilezas.
Não foi numa sala de aula.
Foi na rua.
No convívio com pessoas que já perderam quase tudo, menos a esperança de serem compreendidas.
Foi em conversas que duraram segundos, mas deixaram marcas.
Em olhares que me atravessaram como se quisessem gritar “me veja, por favor”.

Tem gente que pede um favor e entrega uma dor escondida.
Outros pedem um café, mas o que querem mesmo é companhia.
Tem quem se recuse a falar…
Mas o corpo fala por eles.
Fala através da postura, dos ombros curvados, da voz trêmula que tenta soar firme.

Aprendi, com o tempo, que as maiores dores não fazem escândalo.
Elas se sentam ao lado da gente com um sorriso cansado.
Elas se escondem atrás de frases prontas como “tá tudo bem”
ou de um “valeu” dito rápido, só pra encerrar logo a conversa.

E eu fui aprendendo a respeitar esse tempo.
A não invadir o espaço do outro.
A esperar o momento em que a pessoa se sinta segura pra se mostrar.

Ser alguém que lê silêncios não é sobre ser especial.
É sobre estar presente.
De verdade.
É sobre deixar o celular de lado e olhar nos olhos.
É sobre escutar sem pensar na resposta.
É sobre não tentar consertar nada.
É só estar ali, inteiro, disponível.

Tem algo de sagrado nesse tipo de presença.
Não porque transforma tudo num passe de mágica…
Mas porque permite que o outro se veja também.
Quando a gente é visto com respeito, com verdade, com interesse real… a gente começa a se enxergar melhor.

Já vi pessoas que estavam em pedaços se reconstruírem só porque alguém as viu sem julgamento.
Só porque alguém ouviu o que elas não conseguiram dizer.
E, pra mim, isso é quase um milagre.

E você sabe, Cido…
Milagres, no fundo, são feitos disso:
de gente que escolhe estar.
De gente que escolhe ficar.
De gente que escolhe ver.

Eu não sei de tudo.
Mas sei quando alguém está quase desistindo e precisa de uma âncora.
Sei quando o riso é só uma tentativa de se manter de pé.
E sei, também, quando o silêncio é um pedido de socorro — mas dito com vergonha.

Tem dores que não cabem nas palavras.
Tem histórias que a boca não consegue contar.
Mas os olhos... ah, os olhos contam tudo.

E aí, nesse instante, o mundo para.
A pressa vai embora.
E a gente simplesmente se escuta.
Um de cada vez.
Com tempo.
Com alma.

Se tem uma coisa que eu aprendi com o tempo, é isso:
a maior parte das pessoas só quer ser vista.
Só quer ser ouvida.
Só quer sentir que, mesmo em meio ao caos, ainda existe alguém ali.
De verdade.

Talvez esse seja o maior poder que a gente possa ter nos dias de hoje:
o poder da presença.

O Presente é a Margem Onde os Pés Tocam o Chão

O Presente é a Margem Onde os Pés Tocam o Chão Titus, o som do coração Tem momentos em que a gente para. Ou porque a vida manda parar, ou po...