terça-feira, 22 de abril de 2025

O que os olhos não dizem, o corpo grita

Era São Paulo. Mais de vinte e cinco anos atrás. A cidade já carregava nas veias aquele sangue acelerado, misturado com o pó dos ônibus e o cheiro de pastel na esquina. Eu morava numa pensão modesta ali perto da Consolação, e todos os dias cruzava a cidade num vai e vem sem muito glamour, mas cheio de encontros. Trabalhava, estudava, vivia — tudo ao mesmo tempo, como todo paulistano que se vira entre os sonhos e os boletos.

Naquele tempo, o centro ainda tinha sua dignidade de ferro e concreto, mesmo cansado. A Estação da Luz ainda parecia um cartão-postal esquecido no tempo, e a praça da Sé era um palco onde a vida improvisava em tempo real.

Foi ali, entre a Xavier de Toledo e a São João, que vi ele.
Não tinha nome. Pelo menos, não um que me dissesse naquele momento. Mas tinha um corpo que falava. E falava alto.

Era um fim de manhã típico — céu encoberto, cheiro de pão amanhecido no ar, gente pra todo lado. Mas ele, ele parecia fora do ritmo. Um passo atrás do mundo. Arrastava os pés como se cada um carregasse um ano de dor. Mão enfiada no bolso do moletom puído, o olhar colado nas pedras portuguesas do calçadão, como quem procura uma resposta no chão.

Ele não pedia nada. Não estendia a mão. Mas o corpo dele gritava.

E a gente, quando carrega o coração meio aberto — às vezes por vocação, às vezes por ferida — aprende a ouvir esse tipo de grito. Não vem com som. Vem com presença. Uma presença que esbarra na gente mesmo sem encostar.

Cheguei perto. Perguntei se queria um pão de queijo ali do boteco da esquina. Ele recusou. Disse que tava tudo bem. Mas não foi embora. E eu também não.

Ficamos.
Às vezes, o gesto mais revolucionário é ficar.

A conversa veio aos poucos, como chuva fina. Primeiro o nome do bairro onde nasceu. Depois a história da avó que criou ele. Aí veio o baque: a mãe internada, o pai ausente, a rua como única possibilidade. Perdera o emprego, a confiança, o rumo. E junto com tudo isso, perdeu também o olhar dos outros.

Disse:
"O pior não é passar fome. É não existir pra ninguém."

Aquilo me travou. Em plena São Paulo, onde milhões de passos se cruzam todos os dias, ele só queria ser visto. Não notado como estatística ou caso social. Mas visto. Como ser humano. Como alguém que ainda pulsa.

E, Cido, ali eu entendi que o corpo fala. Fala quando a palavra engasga. Fala no jeito de andar, de se encolher, de evitar o mundo. Fala no silêncio.

Depois disso, passei a caminhar mais devagar por São Paulo. A cidade ainda era um bicho corrido, mas eu aprendi a escutar seus sussurros. Vi o menino que vendia chiclete na Augusta olhando pro céu como quem esperava uma resposta. Vi a moça da barraca de cachorro-quente do Anhangabaú chorando sem som quando pensava que ninguém via. Vi o segurança da loja dormindo em pé, exausto de um turno dobrado.

Todos gritavam. Cada um à sua maneira.

Mas quem escuta?

A pressa é surda, Cido. E São Paulo é feita de pressa.

Mas eu tive esse privilégio. De parar. De ver. De ouvir um silêncio que dizia tudo.

E talvez, naquele dia, eu não tenha feito muito. Talvez só tenha sido um ponto de pausa numa trajetória de dor. Mas naquele instante, ele soube que existia. Que alguém o viu. Que ainda era possível estar no mundo sem ser só paisagem.

E você?
Já ouviu o silêncio de alguém hoje?

Titus, o som do coração

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